Poucos gravadores podem fazer uma exposição só de gravuras e apresentar 60 imagens diferentes. Não são variações de cores na mesma imagem, não se trata da mesma imagem (com aparência variada) permutada até o infinito num monótono exercício decorativo. São 60 imagens criadas uma a uma, com tratamento e enfoque particularizado. É claro que elas fazem parte da mesma odisseia, de uma única visão da realidade, filosofia do fazer e interpretativa, uma maneira só, um só artista, uma só gesta.
O método e a percepção. O artista percebe o mundo e isto é pessoal, intransferível. Se não, qual seria a sua função? Rossi não vê a realidade apenas através de formas e cores. Ele funda-se no ser humano. Desta maneira, com este enfoque principal, a sua arte e a sua gravura é humanística. João Rossi entende o mundo como um mundo construído pelo ser humano e é neste universo inteiramente humano que ele atua. A paisagem é humana. O homem é a paisagem deste artista.
É a partir desta proposta humanística que Rossi estabelece um dos mais notáveis exemplos de experimentação que a gravura já teve no nosso país. Raros gravadores têm, em qualquer parte, a mesma dedicação e liberdade criativa de João Rossi. Ele trabalha o seu suporte como se fosse uma escultura ou uma matéria prima. Ele o retalha, articula vazios e relevos em sistemas especiais de elaboração que, forçosamente, determinam o processo de impressão e as características do papel, sempre com as marcas desta matriz revolucionária: relevos, marcas, estruturas geométricas. Por este ângulo, Rossi poderia ser uma formalista. Mas, como este extremo requinte formal está aliado à sua visão humanística, nós temos um conjunto integrado no qual se encontra uma gravura em plena maturidade e processo e nos limites do possível na técnica. Rossi, por este lado, ainda que não seja esta a sua intenção primordial, discute os limites da gravura como poucos o fizeram. Como estamos distantes da gravura como ilustração ou peça decorativa.
A constância de Rossi ao seu tema e assuntos, a tenacidade como desenvolve a sua visão humanística, é capaz de nos apresentar a odisseia dos povos da América do Sul. É um fato notável. A coerência linguística está associada à constância formal e ao desenvolvimento orgânico, mais que intelectual, dos assuntos que emocionam o artista. É uma reflexão, através do papel, sobre a realidade. Ao fim e ao cabo, Rossi construiu uma obra extraordinária, capaz de grande contribuição.
Não tenho o menor receio de apresentar João Rossi como um dos principais gravadores da história brasileira. E isto num país que se destacou pela qualidade de sua produção contemporânea. Não posso deter-me nas particularidades. As séries Ameríndias (tão percursora em relação atual e superficial moda), os Niños Muertos, os Vendedores de Rua, o Urbano. Basta lembrar que, em todos estes momentos, o artista esteve encantado com as luzes do mundo, da natureza ao urbano e que, sempre, foi capaz de renovar a fertilizar esta visão. Não há nunca o apelo à demagogia, ao simples, ao fácil e agradável. O rigor de Rossi é o de quem utiliza e é utilizado pela arte para criar uma observação do mundo.
Certamente, todos estes aspectos têm a ver com o conjunto de sua obra, uma denodada experimentação de materiais e processos numa liberdade alucinada. O percurso de um artista em direção ao entendimento. Estas ligações e as fiz num livro sobre o artista, “Luzes da América”. Hoje, detidos nesta série de imagens gravadas, severamente gravadas, no afloramento da consciência e na constância e tenacidade que possuem só os artistas que entendem o seu trabalho como um exercício do ser, com esta dedicação existencial, podemos dizer que João Rossi faz parte da galeria dos verdadeiros heróis de nosso país.